Nesse setor tradicionalmente masculino, lentamente a mulher vai conquistando espaço em postos que vão da direção de empresas aos canteiros de obras.
Embora as mulheres já tenham conquistado um espaço bem expressivo na engenharia e na arquitetura, elas ainda se deparam com reações hostis próprias do machismo estrutural, principalmente em atividades de execução. Em qualquer que seja a função, sobressai a capacidade da mulher de contemplar o todo e o detalhe, ao mesmo tempo.
“Na maneira de agir e administrar, temos um olhar multifocal, uma visão mais holística da empresa, desde pessoas aos bens e capital, enquanto os homens resolvem melhor questões mais pontuais, sem ver, muitas vezes, o cenário geral”, analisa Suzana Russi, presidente da Construtora e Incorporadora J.A. Russi, especializada no segmento de alto padrão, sediada em Itapema (SC).
A opinião é compartilhada por Bia Kern, presidente da organização não governamental Mulher em Construção, que desde 2006 qualificou milhares de trabalhadoras em vários tipos de atividade. “No canteiro, a mulher verifica cada item individualmente e sua incorporação ao conjunto da obra. É um olhar de ‘pomba’, que se diferencia dos homens pela maior atenção aos detalhes, nível de organização e técnica, além de comprovado comprometimento”, diz. Ela e Russi relatam suas experiências.
MULHERES NO CANTEIRO
Das 6 mil mulheres formadas em cursos da ONG Mulher em Construção, 40% foram contratadas formalmente pelo mercado da construção civil e outras 28% atuam como autônomas em pequenos serviços. Em anos recentes, a iniciativa cresceu e conquistou novos patamares de inserção de mulheres no mercado de trabalho. São, em geral, pertencentes às camadas mais pobres da população e sem profissão.
“A maior parte de nossos projetos se realiza em parcerias com empresas ou com financiamento pontual, como o que se inicia agora com 24 mulheres de presídio do Rio Grande do Sul, com apoio da Brasil Foundation”, diz.
A Comgás, empresa paulista de distribuição de gás natural, por exemplo, procurou a organização em 2021, para a criação de curso de gasista. “Porém, nem nós nem eles tínhamos esse tipo de conteúdo. A solução veio de parceria com o Centro Paula Souza e um antigo funcionário da companhia de gás. Participamos, convocando as mulheres e preparando os homens e os empresários para que as trabalhadoras entrassem com segurança nos canteiros de obras”, explica.
O grande desafio de Kern é buscar recursos para os projetos. Foi o caso da oficina inovadora batizada de “Divas da Construção”, em Novo Hamburgo (RS). “Constatamos que as mulheres estavam se formando em tarefas específicas, como hidráulica e elétrica. Criamos essa oficina, método em que as 15 participantes passam a entender e executar uma obra inteira”, conta.
Iniciada em 202, a construção entra, agora, em fase de conclusão, beneficiada pelos R$ 209 mil ganhos no programa de TV de Luciano Huck. Parte do valor vai financiar, também, o programa no presídio.
No seu cardápio de formação profissional estão as oficinas de restauro para obras de terceiros. O conhecimento é repassado pela ONG ou pela contratante, como o projeto chamado Canteiro Vivo, resultado da parceria com o Estúdio Sarasá, especializado na área, e a Associação Cultural Vila Flores.
“Eram 20 vagas e recebemos mais 1550 mulheres. Dessas, selecionamos 30 que estão fazendo o curso com arquiteta e trabalhando de forma remunerada, dentro do Palácio Piratini, sede do governo gaúcho. Outras 30 mulheres foram alocadas para a reforma da Casa das Rosas, na avenida Paulista (SP)”, conta Kern.
Em Taboão da Serra (SP), um ginásio está sendo reformado para sediar a escola da ONG gaúcha. Em março último, a construtora Cury pediu cinco mulheres para atividades de assistência técnica em suas obras.
“Formamos seis delas em curso de 45 dias, que vão de hidráulica a revestimento cerâmico, com nossas instrutoras e pessoal da construtora. Todas elas estão empregadas e são muito requisitadas, inclusive uma senhora de 65 anos que está dando um ‘baile’. A Cury aumentou em quase 100% a produtividade e são muito gratos”, comemora.
Na trajetória da organização, novas frentes de trabalho vão sendo abertas. “Em 2010, por exemplo, foram em vão todas as tentativas que fizemos de colocar mão de obra feminina em empresas da área de eletricidade”, lembra Kern. Recentemente, quando a CPFL – concessionária paulista de energia – solicitou, apareceram 840 mulheres para 14 vagas, para trabalhar com alta tensão. E todas continuam no emprego.
“Há um desemprego altíssimo, são mais de 3 milhões de mulheres fora do mercado. Elas não têm conhecimento e nós precisamos de recursos e parceiros”, destaca Kern, apontando que a cada chamamento, o número de inscritas pode chegar a 1500 para poucas vagas.
Para ela, a profissionalização é um caminho para que as mulheres se tornem cidadãs, afinal muitas delas se submetem à violência doméstica “porque não têm dinheiro no bolso”. Por outro lado, esse é um mercado que precisa, cada vez mais, de gente qualificada.
“Fazemos política pública sem sermos um órgão público. Mas entendemos que as várias instâncias do executivo deveriam olhar para esse segmento e criar políticas públicas”, diz.
MULHERES NA DIREÇÃO DE CONSTRUTORA
As irmãs Suzana e Joana Russi cresceram vivenciando as atividades da J.A. Russi, construtora fundada pelo pai, João Amadeu, em 1989, sabendo desde sempre que, um dia, trabalhariam lá. Ambas formadas em Direito e Gestão Empresarial, criaram e conduziram por anos a empresa especializada em fundações, a Nacional Fundações, de abrangência nacional. Com o falecimento precoce do pai há cinco anos, assumiram a empresa, e a mãe, Rose, permaneceu como membro do conselho administrativo.
“Eu e minha irmã começamos cedo na empresa, em funções variadas, como office boy, secretária, auxiliar fiscal. Depois, passei a trabalhar na administração do grupo, porque temos algumas construtoras associadas sob o guarda-chuva da J.A. Russi”, conta Suzana. Dois dias após a perda do pai, diante da diretoria foi feito o reposicionamento das funções. Ela assumiu a presidência e Joana a vice.
O perfil de mercado atendido pela construtora não foi alterado, permanecendo o alto padrão de imóveis residenciais e comerciais, nos municípios catarinenses de Itajaí, Balneário Camboriú e Itapema. Até porque, lembra ela, não existe mudança radical em empresas incorporadoras e construtoras em decorrência do longo tempo para maturação do projeto e execução dos empreendimentos. “Entregamos o que já estava projetado e lançamos outros projetos frente mar e quadra mar”, fala.
Suzana destaca que a construção civil é uma indústria totalmente artesanal, perdendo apenas para a pesca. “É um sistema ainda bruto, que usa as mãos, a força. Por isso, nela predominam os homens”. Por outro lado, as duas irmãs cresceram em famílias de mulheres fortes, como a avó que, à frente de uma olaria, ficava na boca da fornalha fazendo tijolos e telhas, além de tocar o negócio.
“Nosso pai, desde cedo, nos incentivou a conquistar o que quiséssemos, sem depender de terceiros. Sempre nos apoiou a estudar e era exigente no trabalho, porque acreditava que só conseguiríamos cobrar dos outros se tivéssemos passado pela mesma situação”, relata.
Na prática, ela constata que precisa conhecer todos os processos da empresa para apresentar soluções. “Se alguém me diz que um equipamento não está funcionando, preciso ter essa vivência para resolver”, aponta.
Na condição de mulher dirigente e jovem, Suzana enfrentou eventuais situações típicas de preconceito. No passado, os stakeholders tratavam diretamente com o fundador da construtora. Na condição de presidente, Suzana cita poucos momentos em que foi tratada diferente por ser mulher. “A absoluta maioria respeita nossa capacidade e competência”, constata.
Hoje, com duas obras de grande porte em execução, fica à vontade mesmo nas reuniões que mantém nos canteiros. “Num primeiro momento, quando assumimos, houve quem demonstrou dificuldade em tratar com mulher. Alguns foram assimilando e mudaram a postura, outros saíram. Na equipe ficou quem contribui, respeita e aceita que são mulheres que estão no poder”, diz.
Com 130 funcionários diretos, inclusive de um centro comercial em Itapema, a construtora conta com mão de obra feminina apenas entre prestadores de serviços terceirizados, como analista de controle da qualidade de concreto, engenheiras e arquitetas. Suzana não vê obstáculos para essa presença na construção civil. “O que a mulher quiser fazer, ela vai conseguir, nada mais nos segura”, defende.
Ela conta que, na época de sua empresa de fundações, sugeriu a uma mulher que queria operar o equipamento de hélice contínua que fosse ao canteiro para conversar, observar e decidir. Porém, lá ela viu que o ambiente não era o que idealizava e desistiu. “Se quisesse mesmo, teria superado. A construção civil não é atividade delicada, é uma luta contra o clima, contra a terra, é uma guerra”.
A empresária vê na industrialização o caminho para amenizar essa batalha e já adota sistemas como fachada ventilada, drywall, pré-fabricados de hidráulica e elétrica. “Agora, estamos estudando o uso em nossos projetos de fôrmas deslizantes para paredes de concreto. Tudo para acelerar a produção, no entanto, sempre terá que ter o olhar humano, não há máquina que substitua”, finaliza.
Créditos: Texto: Redação AECweb/Construmarket| Colaboração Técnica Bia Kern , Suzana de Fátima Russi | Foto: Shutterstock